16 de jul. de 2016

A realidade e desafios da família

 A família é fundamental para o futuro do mundo e da Igreja. É necessário prestar atenção à realidade concreta, porque "os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história através dos quais a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do matrimônio e da família".[João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio]
Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimônio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer.
A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa ser protegida. A defesa destes direitos é um apelo profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão.
A situação atual da família
Inicialmente, há que considerar o crescente perigo representado por um individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo os seus próprios desejos assumidos como absolutos. As tensões causadas por uma cultura individualista exagerada de posse e fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade. Gostaria de acrescentar o ritmo da vida atual, o stresse, a organização social e laboral, porque são fatores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções permanentes. A liberdade de escolher permite projetar a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não se tiver objetivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de se dar generosamente.
Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família, esta pode transformar-se em um lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe parecer conveniente para si mesma, enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. Neste contexto, o casamento como um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências do momento ou pelos caprichos da pessoa. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.
Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro. No mundo atual, aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projeto comum e conservam o afeto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o casamento e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera.
Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural que não promove o amor e a doação. Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam de uma relação afetiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear rapidamente. O narcisismo torna as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. 
Em alguns países, muitos jovens são frequentemente levados a adiar o matrimônio por problemas de tipo econômico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o casamento e a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios econômicos derivados da convivência, uma concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e burocrático.
Preocupa a difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet e pela situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estágios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais.
O enfraquecimento da fé e da prática religiosa afeta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades. Os Padres disseram que uma das maiores pobrezas da cultura atual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à realidade socioeconômica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias.
Nas sociedades altamente industrializadas, onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos. A valorização da fase final da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade atual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da passagem. A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes.
Alguns desafios
Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba dificultada porque os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comer em juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distração, para além da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente.
Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências. Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens desorientados e sem regras.
Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimônio seja algo que beneficia a sociedade. Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade.
Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adotar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. A força da família reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor.
Outro desafio surge de várias formas duma ideologia que nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo. Preocupa o fato de algumas ideologias deste tipo procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem separar o sexo biológico da função sociocultural do sexo. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações autodefensivas, em vez de suscitar uma criatividade missionária. A Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. Os grandes valores da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana. Se constatamos muitas dificuldades, estas são um apelo para libertar as energias da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, ações transformadoras e imaginação da caridade.
-- resumo do capítulo 2 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

  

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