9 de jul. de 2013

Salmo 64: A alegria das criaturas de Deus pela Sua providência

Peaceful Kingdon, obra de John August Swanson
A nossa viagem pelos Salmos da Liturgia das Laudes leva-nos agora a um hino, que nos seduz sobretudo pelo maravilhoso quadro primaveril da última parte (cf. Sl 64, 10-14), um cenário cheio de vigor, esmaltado de cores, percorrido por vozes de alegria.

Na realidade, o Salmo 64 tem uma estrutura mais ampla, fruto do entrelaçamento de duas tonalidades diferentes:  em primeiro lugar, sobressai o tema histórico do perdão dos pecados e do acolhimento junto de Deus (cf. vv. 2-5); depois, é feita menção do tema cósmico da ação de Deus em relação aos mares e aos montes (cf. vv. 6-9a); por fim, é desenvolvida a descrição da primavera (cf. vv. 9b-14):  no panorama cheio de sol e árido do Próximo Oriente, a chuva fecundante é a expressão da fidelidade do Senhor à criação (cf. Sl 103, 13-16). Para a Bíblia, a criação é a sede da humanidade e o pecado é um atentado à ordem e à perfeição do mundo. Portanto, a conversão e o perdão dão de novo integridade e harmonia ao cosmos.

A primeira parte do Salmo leva-nos ao interior do templo de Sião. Ali acorre o povo com suas misérias morais, para invocar a libertação do mal (cf. Sl 64, 2-4a). Uma vez obtida a absolvição das culpas, os fiéis sentem-se hóspedes de Deus, próximos d'Ele, prontos para serem admitidos à sua mesa e para participarem na festa da intimidade divina (cf. vv. 4b-5).

Depois, o Senhor que se eleva no templo é representado com um perfil glorioso e cósmico. De fato, diz-se que Ele é a "esperança dos confins da terra e dos mares longínquos... firma as montanhas com a Sua força... aplaca o bramido dos mares, o estrondo das vagas... os que habitam os confins da terra tremem perante os Seus prodígios", do Oriente até ao Ocidente (cf. vv. 6-9).

No interior desta celebração de Deus Criador, encontramos um acontecimento que desejo realçar:  o Senhor consegue dominar e silenciar até o estrondo das águas do mar, que na Bíblia simbolizam a desordem, em oposição à ordem da criação (cf. Jb 38, 8-11). Eis a forma de exaltar a vitória divina não só sobre o nada, mas também sobre o mal:  por este motivo ao "bramido do mar" e ao "estrondo das suas ondas" associa-se também "o tumulto dos povos" (cf. Sl 64, 8), isto é, a rebelião dos soberbos.

Santo Agostinho comenta de maneira eficaz:  "O mar representa o mundo actual:  amargo de salsugem, agitado pela tempestade, onde os homens com a sua cupidez pervertida e desordenada, se tornam como os peixes que se devoram uns aos outros. Olhai para este mar agitado, para este mar amargo, cruel com as suas ondas!... Irmãos, não nos comportemos assim, porque o Senhor é a esperança de todos os confins da terra" (Exposição sobre os Salmos II, Roma 1990, pág. 475).

A conclusão que o Salmo nos sugere é fácil:  aquele Deus, que elimina a confusão e o mal do mundo e da história, pode vencer e perdoar a maldade e o pecado que o orante leva consigo e apresenta no templo, com a certeza da purificação divina.

A este ponto, entram no cenário as outras águas:  as da vida e da fecundidade, que na Primavera regam a terra e, em pensamento, representam a vida nova do fiel perdoado. Os versículos finais do Salmo (cf. Sl 64, 10-14), como se dizia, encerram uma grande beleza e significado. Deus mata a sede da terra fendida pela aridez e pelo gelo do inverno, dessedentando-a com a chuva. O Senhor é semelhante a um agricultor (cf. Jo 15, 1), que faz crescer o grão e nascer a erva com o seu trabalho. Prepara o terreno,  irriga  os  sulcos,  revira os torrões,  rega  todas  as  partes  do seu campo.

O Salmista usa dez verbos para descrever esta amorosa acção do Criador em relação à terra, que é transfigurada numa espécie de criatura viva. De fato, "tudo canta a brada de alegria" (Sl 64, 14). A este propósito, são sugestivos os três verbos relacionados com o símbolo da veste:  "as colinas revestem-se de alegria, os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales enchem-se de trigais" (vv. 13-14). A imagem é a de uma pradaria salpicada pela candura das ovelhas; as colinas revestem-se talvez com os vinhedos, sinal de alegria pelo seu produto, o vinho, que "torna alegre o coração do homem" (Sl 103, 15); os vales revestem-se com o manto dourado das searas. O versículo 12 recorda a coroa, que poderia fazer pensar nas grinaldas dos banquetes, colocadas na cabeça dos convidados (cf. 28, 1.5).

Todas juntas, as criaturas, como que numa procissão, dirigem-se ao Criador e Soberano, dançando e cantando, louvando e rezando. Mais uma vez a natureza torna-se um sinal eloquente da ação divina; é uma página aberta para todos, pronta para manifestar a mensagem nela delineada pelo Criador, porque "pela beleza e grandeza das criaturas pode chegar-se, por analogia, ao conhecimento do seu Autor" (Sab 13, 5; cf. Rm 1, 20). Contemplação teológica e abandono  poético  fundem- se  juntos neste  poema  e  tornam-se adoração e louvor.

Mas o encontro mais intenso, o que o Salmista tem em vista com todo o seu cântico, é aquele que une criação e redenção. Como a terra na Primavera ressurge pela acção do Criador, assim o homem ressurge do seu pecado pela acção do Redentor. Criação e história estão de tal forma sob o olhar providencial e salvífico do Senhor, que vence as águas agitadas e destruidoras e dá a água que purifica, fecunda e mata a sede. De fato, o Senhor "cura os atribulados de coração e pensa-lhe as chagas", mas também "cobre os céus com as nuvens e... prepara a chuva para a terra;... faz crescer as ervas nas montanhas" (Sl 146, 3.8).

Desta forma, o Salmo torna-se um cântico à graça divina. É ainda Santo Agostinho quem, ao comentar o nosso Salmo, recorda este dom transcendente e único:  "O Senhor nosso Deus diz ao teu coração:  eu sou a tua riqueza. Não te preocupes com aquilo que o mundo te promete, mas com o que te promete o Criador do mundo! Está atento ao que Deus te promete, se observares a justiça; e despreza aquilo que o homem te promete para te afastar da justiça. Não te preocupes, portanto, com aquilo que o mundo promete! Tem antes em consideração o que o Criador do mundo promete" (l.c., pág. 481).

-- Papa João Paulo II, na audiência de 6 de Março de 2002

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