Mas, Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?
São, por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhas da consolação e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma significação inusitada.
Qual é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundância transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do homem exterior.
No batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.
Ó felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5,5).
Nessas lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias, suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas lágrimas e suspiros.
Ele te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!
Se é tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas, por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. l Jo 2,27).
De qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.
IX. A graça se esconde
Ó minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17,4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas eis que já diz o Esposo, Deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32,26), já recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.
Dada, pois, a bênção e mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn 32,25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo, depressa escapa.
Ele se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.
X. Como a ocultação da graça coopera para o nosso bem
Mas não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o Esposo te oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8,28), e ganhas com a partida e com a vinda.
Ele veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela, a fim de que a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à natureza.
Esta graça, o Esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.
Além disso, se nunca faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a revelar-se em nós (cf. Rm 8,18), é enigmática e parcial, talvez julgássemos que temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim, para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf. 8141,4).
Ele permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32,11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1,3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis, não mais em figura e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16,22).
XI. Com que cuidado a alma se deve comportar depois da visita da graça
Mas, acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1,18). Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de leviandade.
Este Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis.
É delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45,3), e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.
Ele não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para merecer a visita freqüente do teu Esposo.
Temo que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.
-- Carta de Dom Guigo II, cartuxo, prior da Grande Charteuse (século XII)
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