Cada semana da Liturgia das Laudes é marcada na sexta-feira pelo Salmo 50, o Miserere, o Salmo penitencial mais amado, cantado e meditado, hino ao Deus misericordioso elevado pelo pecador arrependido. Já tivemos ocasião, numa catequese precedente, de apresentar o quadro geral desta grande oração. Em primeiro lugar, entra-se na região tenebrosa do pecado para aí levar a luz do arrependimento humano e do perdão divino (cf. vv. 3-11). Depois, exalta-se o dom da graça divina, que transforma e renova o espírito e o coração do pecador arrependido: esta é uma região luminosa, cheia de esperança e de confiança (cf. vv. 12-21).
Detemo-nos, nesta nossa reflexão na primeira parte do Salmo 50, aprofundando alguns dos seus aspectos. Mas, no começo, desejaríamos mencionar a maravilhosa proclamação divina do Sinai, que é quase o retrato do Deus cantado pelo Miserere: "Javé! Javé! Deus misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-Se, cheio de bondade e fidelidade, que mantém a Sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado" (Êx34, 6-7).
A invocação inicial eleva-se a Deus para obter o dom da purificação que faça como dizia o profeta Isaías "brancos como a neve" e "como a lã" os pecados, em si semelhantes ao "escarlate" e "vermelhos como a púrpura" (cf. Is 1, 18). O Salmista confessa o seu pecado de forma clara e sem hesitações: "Reconheço, de verdade, a minha culpa... Contra Vós apenas é que eu pequei, pratiquei o mal perante os vossos olhos" (Sl 50, 5-6).
Por conseguinte entra em cena a consciência pessoal do pecador que se abre para compreender claramente o seu mal. É uma experiência que envolve liberdade e responsabilidade, e leva a admitir que se quebrou o vínculo para construir uma escolha de vida alternativa em relação à Palavra divina. Disto deriva uma decisão radical de mudança. Tudo isto está encerrado naquele "reconhecer", um verbo que em hebraico não significa apenas uma adesão intelectual mas uma opção vital.
É o que, infelizmente, muitos não fazem, como nos adverte Orígenes: "Há quem, depois de ter pecado, se sinta completamente tranquilo e não se preocupe com o seu pecado nem tocado pela consciência do mal cometido, mas viva como se nada tivesse acontecido. Sem dúvida, esse não poderia dizer: tenho sempre consciência do meu pecado. Ao contrário, quando, depois do pecado, o pecador se inquieta e se aflige devido ao seu pecado, quando se sente atormentado pelos remorsos, dilacerado sem tréguas e sofre sobressaltos no seu íntimo que se eleva para o contestar, ele, com razão, exclama: não há paz para os meus ossos face ao aspecto dos meus pecados... Portanto, quando os pecados cometidos se apresentam aos olhos do nosso coração, os revemos um por um, os reconhecemos, nos envergonhamos e arrependemos do que fizemos, então perturbados e aterrorizados, justamente dizemos que não há paz para os nossos ossos face ao aspecto dos nossos pecados..." (Homilias sobre os Salmos, Florença 1991, págs. 277-279).
O reconhecimento e a consciência do pecado é, portanto, fruto de uma sensibilidade adquirida graças à luz da Palavra de Deus.
Na confissão do Miserere há um realce de particular evidência: o pecado não é compreendido apenas na sua dimensão pessoal e psicológica, mas é analisado sobretudo na sua qualidade teológica. "Contra Vós apenas é que eu pequei" (Sl 50, 6), exclama o pecador, ao qual a tradição deu o rosto de David, consciente do seu adultério com Betsabé, e da denúncia do profeta Natan contra este crime e contra o crime da morte do seu marido, Urias (cf v. 2; 2 Sam 11, 12).
Por conseguinte, o pecado não é apenas uma questão psicológica ou social, mas é um acontecimento que prejudica a relação com Deus, violando a sua lei, recusando o seu projecto na história, alterando a escala dos valores, "mudando as trevas em luz e a luz em trevas", isto é, "chamando bem ao mal e mal ao bem" (cf. Is 5, 20). Antes de ser uma possível afronta contra o homem, o pecado é antes de mais traição a Deus. São emblemáticas as palavras que o filho desprovido de bens pronuncia diante de seu pai, pródigo de amor: "Pai, pequei contra o Céu isto é, contra Deus e contra ti!" (Lc 15, 21).
A este ponto o Salmista introduz outro aspecto, mais diretamente relacionado com a realidade humana. Foi a frase que suscitou muitas interpretações e que também foi relacionada com a doutrina do pecado original: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me pecador" (Sl50, 7). O orante deseja indicar a presença do mal dentro do nosso ser, como é evidente na menção da concepção e do nascimento, uma forma de exprimir toda a existência partindo da sua origem. Mas o Salmista não relaciona formalmente esta situação com o pecado de Adão e Eva, isto é, não fala explicitamente de pecado original.
Contudo, é evidente que, segundo o texto do Salmo, o mal se esconde nas próprias profundezas do homem, é inerente à sua realidade histórica e, por isso, é decisivo o pedido da intervenção da graça divina. O poder do amor de Deus supera o poder do pecado, o rio transbordante do mal pode menos do que a água fecundante do perdão: "Onde abunda o pecado, superabunda a graça"(Rm 5, 20).
Por este caminho, a teologia do pecado original e toda a visão bíblica do homem pecador são indirectamente recordados com palavras que deixam, ao mesmo tempo, entrever a luz da graça e da salvação.
Como teremos ocasião de descobrir no futuro, voltando a falar deste Salmo e dos versículos seguintes, a confissão da culpa e a consciência da própria miséria não levam ao terror ou ao pesadelo do juízo, mas à esperança da purificação, da libertação, da nova criação.
De fato, Deus salva-nos "não por causa das obras da justiça que tivéssemos feito, mas por misericórdia, mediante o batismo de regeneração e renovação do Espírito Santo, que derramou sobre nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salvador" (Tit 3, 5-6).
-- Papa João Paulo II, na audiência de 8 de Maio de 2002
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