26 de jun. de 2011

O amor e os ciúmes no casamento

* segunda parte do capítulo 38, do livro Filotéia

Conservai pois, ó maridos, um terno, constante e cordial amor a vossas mulheres: por isto foi a mulher tirada do lado mais chegado ao coração do primeiro homem, para que fosse amada por ele cordial e ternamente. As fraquezas e enfermidades de vossas mulheres, quer do corpo, quer do espirito, não devem provocar-vos a nenhuma espécie de desdém, mas antes a uma doce e amorosa compaixão, pois Deus criou-as assim para que, dependendo de vós, vos honrem e vos respeitem mais, e de tal modo as tenhais por companheiras que contudo sejais os chefes e superiores res.

As bodas de Caná, de Jan Vermeyen
E vós, ó mulheres, amai ternamente. cordialmente, mas com um amor respeitoso e cheio de reverência, os maridos que Deus vos deu: porque realmente por isso os criou Deus de um sexo mais vigoroso e predominante. e quis que a mulher fosse uma dependência do homem, e osso dos seus ossos, e carne da sua carne, e que ela fosse produzida por uma costela deste, tirada debaixo dos seus braços, para mostrar que ela deve estar debaixo da mão e govêrno do marido; e toda a Escritura Santa vos recomenda severamente esta sujeição, que aliás a mesma Escritura vos faz doce e suave, não sómente querendo que vos acomodeis a ela com amor, mas ordenando a vossos maridos que a exerçam com grande afeto, ternura e suavidade. Maridos, diz São Pedro, portai-vos discretamente com vossas mulheres, como com um vaso mais frágil, honrando-as.

Mas assim como vos exorto a afervorar cada vez mais este recíproco amor que vos deveis, estai alerta para que não se converta em nenhuma espécie de ciúme: porque acontece muitas vêzes que, como o verme se cria na maçã mais delicada e madura, também o ciúme nasce no amor mais ardente e afetuoso dos casados, cuja substância aliás estraga e corrompe: porque pouco a pouco acarreta os desgostos, desavenças e divórcios. Por certo que o ciúme nunca chega aonde a amizade está de parte a parte fundada na verdadeira virtude: e eis a razão por que ela é um sinal indubitável de um amor sensual, grosseiro, e que se dirigiu a objeto em que encontrou uma virtude defeituosa, inconstante e exposta a desconfianças. É pois uma pretensão tola querer dar a entender com os zelos a grandeza da amizade: porque o ciúme na verdade é um sinal da magnitude e corpolência da amizade, mas não da sua bondade, pureza e perfeição; pois que a perfeição da amizade pressupõe a firmeza da virtude da coisa que se ama, e o ciúme pressupõe a incerteza.

Se quereis, maridos, que as vossas mulheres vos sejam fiéis, ensinai-lhes a lição com o vosso exemplo: Com que cara, diz S. Gregório Nazianzeno, quereis exigir honestidade de vossas mulheres, se vós próprios viveis na desonestidade? Como lhes pedis o que não lhes daís? Quereís que elas sejam castas? Vivei castamente com elas, e como diz São Paulo, saiba cada um possuir o seu vaso em santiticação. Mas, se pelo contrário vós mesmos lhes ensinais as dissoluçöes, não é de admirar que sofrais a desonra da sua perda.

Mas vós, Ó mulheres, cuja honra está inseparàvelmente aliada com a pureza e honestidade, conservai zelosamente a vossa glória, e não permitais que nenhuma espécie de dissolucão empane a brancura da vossa reputação. Temei toda a sorte de ataques, por pequenos que sejam: nunca permítais que andem em volta de vós os galanteios. Todo aquele que vem elogiar a vossa formosura e a vossa graça deve ser-vos suspeito. Porque quem gaba uma mercadoria que não pode comprar, ordinariamente é muito tentado a roubá-la. Mas se ao vosso elogio alguém adicionar o desprezo de vosso marido. ofende-vos sobremaneira, porque a coisa é clara, que não somente quer perder-vos, mas já vos tem na conta de meio perdida, pois que metade do contrato é feito com o segundo comprador, quando se está desgostoso do primeiro.

As senhoras, tanto antigas como modernas, acostumaram-se a levar pendentes das orelhas muitas pérolas, pelo prazer, diz Plinio, que têm em as ouvir tílintar e chocalhar, tocando umas nas outras. Mas quanto a mim, sei que o grande amigo de Deus, Isaac, enviou à casta Rebeca pendentes de orelhas como os primeiros penhôres do seu amor: eu creio que este ornamento místico significa que a primeira coisa que um marido deve ter de uma mulher, e que a mulher lhe deve fielmente guardar, é a orelha, para que nenhuma linguagem ou ruido possa ai entrar, senão o doce e amigável gorjeio das palavras castas e pudicas, que são as pérolas orientais do Evangelho. Porque é preciso lembrar-se sempre de que as almas se envenenam pelo ouvido, como o corpo pela bôca.

O amor e a fidelidade juntas trazem sempre consigo a familiaridade e confiança: é por isso que os Santos e as Santas usaram de muitas carícias reciprocas em seu matrimônio, carícias verdadeiramente amorosas, mas castas; ternas, mas sinceras. Assim Isaac e Rebeca, o casal mais casto dos casados do tempo antigo, foram vistos à janela a acariciar-se de tal sorte que, embora nada nisso houvesse de desonesto, Abimelec conheceu bem que êles não podiam ser senão marido e mulher. O grande São Luis, tão rigoroso com a sua carne, como terno no amor a sua mulher. foi quase censurado de ser pródigo em.tais carícias: embora na verdade antes merecesse elogio por saber despojar-se do seu espirito marcial e corajoso para praticar estas ligeiras obrigações necessárias para a conservação do amor conjugal; porque ainda que estas pequenas mortíficações de pura e franca amizade não prendam os corações, contudo aproximam-nos, e servem de agradável isca para a mútua conversação.

-- Do livro Filotéia, de São Francisco de Sales (século XVI)

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