19 de ago. de 2013

Sermão sobre o conhecimento e a ignorância

Tinha vos anunciado o tema do sermão de hoje: a ignorância, ou melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há duas ignorâncias: a de nós próprios e a de Deus. E vos aconselhava a evitar uma e outra, pois ambas são perdição.

Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse assunto. Antes, porém, discutiremos se toda ignorância é condenável. Parece-me que não, pois nem toda ignorância produz perdição: há muitas e mesmo inúmeras coisas que se podem ignorar sem problema algum para a salvação.

Se alguém, por exemplo, desconhece artes mecânicas, como a carpintaria, a arte de edificação e outras que são exercidas para a utilidade da vida neste mundo, acaso tal ignorância constitui obstáculo para a salvação?

Também são muitos os que se salvaram e agradaram a Deus pela sua conduta e com seus atos sem as artes liberais (e, certamente, são úteis e moralmente bons esses estudos). Quantos não enumera a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram agradáveis a Deus não com erudição, "mas com consciência pura e fé sincera" (I Tim 1,5). E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não com os de seu saber. Cristo não foi buscar Pedro, André, os filhos de Zebedeu e todos os outros discípulos, entre filósofos; nem em escola de retórica e, no entanto, valeu-se deles para realizar a salvação na terra.

Não é porque fossem mais sábios do que todos os homens - como diz de si mesmo o Eclesiastes (1, 16) -, mas, por causa de sua fé e de sua benignidade, o Senhor os salvou e fez deles santos e mestres. Pois os Apóstolos mostraram ao mundo o caminho da vida, não com sublimidade de discurso, nem com palavras eloqüentes de sabedoria humana, mas pelo modo como aprouve a Deus: pela estultícia de sua pregação, aprouve a Deus salvar os que crêem, porquanto o mundo com sua sabedoria não O conheceu (I Cor 2, 1; 1, 17-21).

Posso estar dando a impressão de querer lançar em descrédito o saber, de repreender os doutos, de proibir o estudo das letras. Longe de mim, tal atitude! Conheço muito bem o inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples.

Com efeito, o que li na Sagrada Escritura foi: "Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não exerças Meu sacerdócio" (Os 4, 6). E mais: "Os doutos resplandecerão com o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça, brilharão como estrelas em perpétuo resplendor" (Dn 12, 3). Mas, por outro lado, li também: "O saber incha" (I Cor 8, 1). E, finalmente: "No acúmulo de saber, acumula-se a dor" (Ecl 1, 18).

Vede que há saberes e saberes: há um saber que produz o inchaço e há um saber que contrista. Quero que sejais capazes de distinguir qual deles é útil e necessário para a salvação: o que incha ou o que dói? E é certo que Aquele que cura os que têm o coração contrito abomina o inchaço dos orgulhosos, pois a Sabedoria diz: "Deus resiste aos soberbos e dá Sua graça aos humildes" (Tg 4,6). E o Apóstolo diz: "Exorto-vos, em virtude do ministério que pela graça me foi dado, a não pretender saber mais do que convém, mas saber com sobriedade" (Rom 12,3).

O Apóstolo não proíbe saber, mas sim saber mais do que convém. E o que é saber com sobriedade? É cuidar de aplicar-se prioritariamente ao que mais interessa saber, pois o tempo é breve. Ora, ainda que todo saber, desde que submetido à verdade, seja bom, tu, que buscas com temor e tremor a salvação e a buscas apressadamente, dada a brevidade do tempo, deves aplicar-te a saber, antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à salvação.

Segundo a ordem, isto é, priorizando o que é mais necessário para a salvação; segundo o amor, isto é, voltando-nos mais ardentemente para o que mais nos impele a amar; segundo o fim: não por vaidade ou curiosidade ou objetivos semelhantes, mas somente pela tua própria edificação e pela de teu próximo.

Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade. Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: "Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes". Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico. Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.

Por isso, convém que a alma antes se conheça a si mesma, coisa que é requerida pela ordem e pela utilidade. Pela ordem, porque, para nós, o primeiro conhecimento deve ser o do que somos; pela utilidade, porque tal conhecimento não incha, mas humilha e serve de fundação para a edificação. Pois o edifício espiritual que não tem seu fundamento na humildade, não se agüenta em pé. E para aprender a humildade, a alma não encontra nada mais convincente do que descobrir-se a si mesma na verdade. Deve-se, portanto, evitar a dissimulação, o auto-engano doloso, deve o homem encarar-se de frente, evitando fugir de si mesmo.

Pois, defrontando-se a alma com a límpida luz da verdade, encontrar-se-á muito diferente do que julgava ser e, suspirando em sua miséria - uma miséria que já não pode esconder porque é verdadeira e manifesta -, clamará com o salmista ao Senhor: "Em Tua verdade me humilhaste" (Sl 119, 75). Como não se humilhará neste verdadeiro conhecimento de si, ao dar-se conta da carga de seus pecados, sob o peso deste corpo mortal, ao ver-se imersa em preocupações terrenas, infectada pelos desejos carnais, cega, curvada, fraca, envolta em mil pavores, angustiada ante mil dificuldades, sufocada ante mil dúvidas, indigente de mil necessidades, inclinada ao vício, impotente para as virtudes?

Onde está agora o olhar arrogante? Onde, a cabeça orgulhosamente erguida? Não será ela ainda mais arremessada em sua desolação, trespassada por espinhos? (Sl 32, 4). Que ela - diz o salmista - derrame lágrimas, que chore e gema, que se volte para o Senhor e clame em sua humildade: "Cura, Senhor, minha alma, pois pequei contra Ti" (Sl 41,5). Se ela se voltar para o Senhor, encontrará consolo, pois Ele é o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação.

Basta um pouco de conhecimento de Deus para experimentar que Ele é piedoso e solícito, pois, na verdade, Ele é um Deus de bondade e misericórdia, que perdoa a maldade (Joel 2,13); Sua natureza é a bondade e é próprio dEle perdoar e ter misericórdia sempre. Deus se dá a conhecer nesta experiência e desta maneira salutar, a partir do momento em que o homem se reconheça indigente e clame ao Senhor; e Ele o ouvirá e dir-lhe-á: "Eu te libertarei e tu Me glorificarás" (Sl 50,15).

Assim, o conhecimento próprio é um passo para o conhecimento de Deus. Vê-lO-ás em Sua imagem, que em ti se forma, na medida em que tu, desarmado pela humildade, com confiança, irás refletindo a glória do Senhor e, levado pelo Espírito de Deus, de claridade em claridade, irás te transformando nessa imagem.

Reparai, pois, como ambos conhecimentos são necessários para a salvação, de tal modo que não pode faltar nenhum dos dois. Pois, se desconheces a ti mesmo, não terás temor de Deus em ti, nem humildade. Por acaso pensas que podes alcançar a salvação sem temor de Deus e sem humildade?

-- São Bernardo de Claraval, dos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos (século XII)

* A festa liturgica de São Bernardo é nesta terça, 20 de Agosto

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