7 de jan. de 2011

É perfeita imitação do Senhor ver-se condenar sem culpa e calar

1. Grande confusão me faz o que vos vou persuadir, porque deveria ter praticado, pelo menos alguma coisa do que vos digo nesta virtude; é assim que eu confesso ter aproveitado muito pouco. Nunca, ao que me parece, me falta motivo para me parecer maior virtude o desculpar-me. Como algumas vezes é lícito e seria mal não o fazer, não tenho discrição - ou, para melhor dizer, humildade - para o fazer quando convém. Porque, verdadeiramente, é de grande humildade ver-se condenar sem culpa e calar, e é perfeita imitação do Senhor que tomou sobre Si todas as culpas. E assim, rogo-vos para terdes nisto grande cuidado, porque traz consigo grandes lucros, e em procurarmos nós mesmas livrar-nos de culpa, não vejo nenhum, a não ser - como digo - nalgum caso em que poderia causar agravo ou escândalo não dizer a verdade. Isto, quem tiver mais discrição do que eu, o entenderá.



2. Creio que vai muito em se acostumar a esta virtude, ou em procurar alcançar do Senhor verdadeira humildade, que daqui deve vir; porque o verdadeiro humilde há-de desejar, de verdade, ser tido em pouco, e perseguido e condenado sem culpa, mesmo em coisas graves. Porque, se quer imitar o Senhor, em que melhor o pode do que nisto? Pois aqui não são necessárias forças corporais nem ajuda de ninguém, senão de Deus.

3. Estas grandes virtudes, minhas irmãs, quereria eu estudássemos muito e fossem a nossa penitência, que em demasiadas penitências já sabeis vos vou à mão, porque podem fazer mal à saúde, se são sem discrição. Aqui, porém, não há que temer, porque, por grandes que sejam as virtudes interiores, não tiram as forças do corpo para servir a Religião, senão que fortalecem a alma; e em coisas muito pequenas - como tenho dito de outras vezes - se podem acostumar para sair vitoriosas nas grandes. Nestas, não tenho eu podido fazer esta prova, porque nunca ouvi dizer coisas más a meu respeito que não visse que ficavam aquém: porque, embora não fosse nas mesmas coisas, tinha ofendido a Deus em outras muitas e parecia-me que tinham feito muito em deixar aquelas, e sempre me alegro mais que digam de mim o que não é, do que as verdades.

4. Ajuda muito a consideração do que se ganha nisto por todas as vias e como nunca - bem vistas as coisas -, nos culpam sem razão, pois o justo cai sete vezes ao dia e seria mentira dizer que não temos pecado. Assim, pois, ainda que não seja naquilo em que nos culpam, nunca estamos totalmente sem culpa, como estava o bom Jesus.

5. Ó Senhor meu! quando penso de quantas maneiras padecestes, e que de nenhuma o merecíeis, não sei o que diga de mim, nem onde tinha o siso quando não desejava padecer, nem onde estou quando me desculpo. Já Vós sabeis, meu Bem, que, se tenho algum bem, não é dado por outras mãos senão pelas Vossas. Pois, que se Vos dá, Senhor, em antes dar muito do que dar pouco? Se é por eu não o merecer, tão-pouco merecia as graças que me tendes feito. E será possível que haja eu de querer que alguém faça bom conceito de coisa tão má, tendo-se dito tanto mal de Vós, que sois o bem sobre todos os bens? Não, não se pode sofrer, Deus meu - nem quisera eu sofrêsseis Vós - que haja em Vossa serva coisa que não contente os Vossos olhos. Pois olhai, Senhor, que os meus estão cegos e se contentam com muito pouco. Dai-me Vós a luz e fazei que, com verdade, deseje que todos me aborreçam, pois tantas vezes Vos tenho deixado a Vós, que me amais com tanta fidelidade!

6. Que é isto, meu Deus? Que lucro pensamos tirar em contentar as criaturas? Que se nos dá de ser muito culpadas por todas elas, se diante do Senhor estamos sem culpa? Ó minhas irmãs, nunca acabamos de entender esta verdade, e assim nunca acabaremos de chegar à perfeição, se não andamos considerando muito e pensando o que ela é e não é!

Pois, embora não houvesse outro lucro senão a confusão que ficará à pessoa que vos tiver culpado, ao ver que vós, sem culpa, vos deixais condenar, isso já seria bem grande; porque, às vezes, uma coisa destas mais levanta uma alma do que dez sermões. E todas devemos procurar ser pregadoras por obras, pois o Apóstolo e a nossa inaptidão nos impedem que o sejamos nas palavras.

7. Nunca penseis que há-de ficar oculto o mal ou o bem que fizerdes, por encerradas que estejais. E pensais, filhas, que ainda que vós não vos desculpeis, há-de faltar quem tome a vossa defesa? Vede como respondeu o Senhor pela Madalena em casa do Fariseu, quando sua irmã a culpava. Não vos levará pelo rigor como fez consigo mesmo, pois, quando teve um ladrão a tomar a Sua defesa, estava já pregado na cruz. Assim, Sua Majestade moverá a quem a tome por vós, e, quando não, é que não será necessário. Isto o tenho eu visto e é assim, ainda que não quisera que isto se vos recordasse, mas antes folgásseis de ficar culpadas. E, do proveito que vereis em vossa alma, o tempo vos dou por testemunha. Porque se começa a ganhar liberdade e tanto se vos dará que digam mal ou bem de vós, antes parece ser negócio alheio. É como quando estão a falar duas pessoas e, como não é connosco, estamos descuidadas da resposta. Assim aqui, com o costume que tomámos em não dar resposta, dir-se-ia que não falam connosco.

Parecerá isto impossível aos que somos muito sensíveis e pouco mortificados. A princípio, é dificultoso; mas eu sei que se pode alcançar esta liberdade, negação e desprendimento de nós mesmos, com o favor do Senhor.
 
-- Do Livro Caminho de Perfeição (capítulo 15), de Santa Teresa de Ávila (século XVI)

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