Seguimos agora com a segunda parte do texto intitulado Confissões.
E depois de uns poucos anos eu estava de novo na Bretanha com meus pais, que me acolheram como um filho e rogaram-me intensamente que eu, após ter passado por tantas tribulações que nunca partisse para longe deles; e neste lugar naturalmente vi numa visão noturna um homem vindo como que da Irlanda, cujo nome era Victoricus, com inumeráveis cartas, e deu para mim uma delas e logo no princípio da carta estava escrito: “A voz dos irlandeses” e enquanto eu recitava o princípio da carta, pareceu-me naquele momento ouvir as vozes daqueles que estavam perto da floresta de Vocluti que fica perto do mar ocidental, e ainda exclamavam como se fosse uma só voz: “Nós te rogamos, santo jovem, venha e caminhe novamente entre nós” e eu estava tão profundamente tocado no meu coração que nem pude ler mais e assim despertei. Graças a Deus, porque depois de muitos anos, o Senhor concedeu-lhes a sua súplica.
Entre as lendas relacionadas à São Patríco, conta-se que teria expulsado as cobras da Irlanda. . |
E outra noite –não sei, Deus o sabe, se dentro de mim ou próximo a mim- foram pronunciadas algumas palavras bem próximo, eu as ouvi, mas não pude compreendê-las, a não ser no final: “Aquele que deu a sua vida por ti, o próprio é que fala dentro de ti.” E deste modo acordei jubiloso.
E uma outra vez, o vi orando em mim, era como que dentro do meu corpo e o ouvia acima de mim, isto é, acima do homem interior, e lá orava fortemente com gemidos, e no meio disto eu estava pasmo e admirado e pensava quem seria esse que orava dentro de mim, mas após o final da oração foi-me revelado que era o Espírito, e assim fui desperto e recordei-me das palavras do apóstolo: O Espírito nos auxilia na debilidade de nossas orações, pois não sabemos orar como convém. Mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis, que não podemos narrar, e mais uma vez: O Senhor, nosso advogado intercede por nós.
E quando fui posto a prova por alguns dos meus senhores, que vieram até mim e relembraram os meus pecados contra o meu árduo episcopado. Naquele dia especialmente, fui fortemente abalado e poderia ter caído de uma vez por todas; mas o Senhor me poupou um convertido e peregrino, pelo amor do seu próprio nome, de forma benévola veio em minha assistência quando estava sendo esmagado. Eu oro a Deus que não lhes será imputado como um pecado que eu caísse em desgraça e desonra.
Noutra ocasião, trinta anos depois, eles trouxeram contra mim um fato que eu tinha confessado antes de ser diácono. Por causa da ansiedade e inquietude da minha alma, eu contei a um amicíssimo meu o que um dia na minha meninice tinha feito, mais precisamente em um momento, porque ainda não era resistente. Eu não sei, Deus o sabe, se eu tinha 15 anos, e não acreditava no Deus vivo, nem nunca tinha crido desde a minha infância, mas permanecia na morte e na incredulidade até que fui castigado e humilhado cotidianamente pela fome e pela nudez.
Por outro lado, não fui para a Irlanda espontaneamente, estava a ponto de desistir, mas isso, no entanto foi para mim um bem, pois por isso fui repreendido pelo Senhor, e ele preparou-me para que hoje fosse o que eu ainda estava longe de ser, a fim de que eu tivesse o cuidado ou me preocupasse pela salvação dos outros, quando ao contrário, naquela época não pensava em nada além de mim mesmo.
Então naquele dia em que fui reprovado como mencionei acima, eu tive uma visão à noite de um texto diante de minha face sem honra, e enquanto isso, ouvi uma voz divina dizendo para mim: com desgosto vimos a face do escolhido, despido de seu nome, e ele não disse: você viu com desgosto, mas: nós vimos com desgosto. Como se ele mesmo se juntasse a mim, ele então disse: Aquele que te tocar é como se tocasse a menina dos meus olhos.
Por este motivo eu dou graças a ele que em tudo me confortou, para que eu não fosse impedido do caminho que decidi seguir e também da minha obra que para a qual fui chamado por Cristo meu Senhor, porém a partir daí eu senti em mim uma virtude não pouca e a minha fé foi provada na presença de Deus e dos homens.
Por isso então eu digo corajosamente, que minha consciência não me reprova. Nem agora e nem no futuro: Deus é minha testemunha que não tenho mentido nessas palavras que eu vos tenho dito.
Porém eu lamento que por causa de meu amigo íntimo mereçamos ouvir tal palavra. Aquele em que confiei à alma! E descobri por um bom número de irmãos, que diante daquela defesa (que eu não estava presente, nem estava eu na Bretanha, nem foi eu que a provoquei) ele em minha ausência lutou por mim, assim disse-me de sua própria boca: eis que tu serás elevado ao grau do episcopado, ao qual eu não era digno. [mas daí veio ele pouco depois publicamente desonrar-me na presença de todos, bons e maus, e porque anteriormente de forma espontânea e alegre perdoara-me, e o Senhor, que é o maior de todos?].
Já disse o suficiente. Mas ainda assim, não posso esconder o presente de Deus que foi dado a nós na terra do meu cativeiro, porque eu o busquei fortemente e lá o encontrei e ele me preservou de todas as iniqüidades (assim creio) por meio da habitação do seu espírito, que opera em mim até os dias de hoje. Corajosamente de novo, mas Deus sabe, se isso foi concedido a mim por homem, eu podia ter mantido silêncio pelo próprio amor de Cristo.
Assim eu dou incansáveis graças ao meu Deus, que me conservou fiel no dia da minha tentação, de sorte que hoje confiantemente ofereço a ele a minha alma como sacrifício vivo ao Cristo Senhor meu, que me protegeu de todas as minhas angústias, por isso digo: quem sou eu, oh Senhor, qual é minha vocação? Que a mim de uma maneira tão divina aparecestes, para que hoje entre os gentios constantemente eu exaltasse e glorificasse teu nome em qualquer lugar que fosse, não só na bonança, mas também na tribulação, de modo que qualquer coisa que aconteça a mim, seja de bem seja de mal, devo aceitar igualmente e a Deus devo sempre dar graças, que me mostrou que devo indubitavelmente para sempre nele confiar e que me encoraja para que, ignorante, nos últimos dias, ouse encarregar-me de uma obra tão maravilhosa, para que eu possa imitar um daqueles que, há muito tempo, o Senhor pré-ordenou como mensageiros do seu evangelho em testemunho a todos os povos até o fim do mundo, assim vemos e assim está acontecendo: Eis que nós somos testemunhas, porque o evangelho tem sido pregado até lugares mais distantes onde não há ninguém.
-- Das Cartas de São Patrício, (século V)
-- texto retirado do site Patrística Brasil, onde o autor traduziu do latim.
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