Celebração pascal na Igreja do Santo Sepulcro, Jerusalem. |
1. Pela benignidade de
Deus, ouvistes de maneira suficiente, nas reuniões precedentes,
sobre a batismo, a crisma e a participação do corpo e sangue de
Cristo. Mas agora é necessário ir adiante, para coroar o edifício
espiritual de vossa instrução.
2. Vistes o diácono
oferecer água ao pontífice e aos presbíteros que rodeiam o altar
de Deus para lavarem-se. Não a deu, absolutamente, por causa da
sujeira corporal. Não é isso. Pois com o corpo sujo nem sequer
teríamos entrado na igreja. Mas lavar as mãos é símbolo de que
nos devemos purificar de todos os pecados e de todas as faltas. Já
que as mãos são símbolo das obras, lavamo-las, indicando
evidentemente a pureza e a irrepreensibilidade das obras. Não
ouviste como o bem-aventurado Davi te introduziu neste mistério ao
dizer: Lavarei as mãos entre os inocentes e andarei ao redor do
teu altar, Senhor (Sl 26,7-8)? Então, lavar as mãos é estar limpo de pecado.
3 Depois o diácono
proclama: Acolhei-vos mutuamente e dai-vos o ósculo da paz. Não
suponhas que este ósculo seja como os que os amigos íntimos se dão
na praça pública. Este ósculo não é assim. Mas este ósculo une
as almas entre si e é para elas penhor de esquecimento de todos os
ressentimentos. É sinal de que as almas se unem e afastam toda
lembrança de toda injúria. Por isso Cristo disse: Quando fores
apresentar uma oferta perante o altar, e ali te lembrares de que teu
irmão tem algo contra ti, deixa ali a tua oferta diante do altar,
vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, depois volta para
apresentar a tua oferta (Mt 5,23-24). Então, o ósculo é reconciliação, e é
por esta razão que é santo, como o bem-aventurado Paulo o proclama
alhures: Saudai-vos uns aos outros no ósculo santo (2Cor 13,12). E Pedro:
Saudai-vos uns aos outros no ósculo de caridade (1Pe 5,5).
Introdução à anáfora
4. Depois disso o
sacerdote proclama: Corações ao alto! Verdadeiramente, nesta
hora mui tremenda, é preciso ter o coração no alto, junto de Deus,
e não embaixo, na terra, nas coisas terrenas. Com autoridade, pois,
o sacerdote ordena que nesta hora se abandonem todas as preocupações
da vida e os cuidados do-mésticos e que se tenha o coração no céu,
junto ao Deus benevolente. Vós então respondeis: Já os temos no
Senhor! assentindo à ordem por causa do que confessais. Ninguém
esteja presente dizendo apenas com a boca: Nós os temos no
Senhor, tendo a mente voltada para as preocupações da vida.
Sempre devemos estar lembrados de Deus. Se isso é impossível pela
fraqueza humana, naquela hora isto é o que mais deve ser procurado.
5. Depois diz o sacerdote:
Demos graças ao Senhor. Deveras, devemos agradecer-lhe, porque
sendo indignos chamou-nos a tamanha graça que nos reconciliou, sendo
seus inimigos, e nos fez dignos da adoção do Espírito. E vós
dizeis: É digno e justo. Pois quando damos graças nós fazemos
algo digno e justo. Ele nos beneficiou não com a justiça, mas além
de toda justiça, fazendo-nos dignos de grandes bens.
Anáfora, prece de louvor
6. Depois disso
mencionamos o céu, a terra e o mar, o sol e a lua, os astros, toda
criatura racional e irracional, visível e invisível, os anjos e
arcanjos, as virtudes, dominações, principados, potestades, tronos,
os querubins de muitas faces e, com vigor, dizemos com Davi: Celebrai comigo o Senhor (Sl 33,1). Lembramo-nos ainda dos serafins, que
Isaías, no Espírito Santo, contemplava. Estavam colocados em
círculo ao redor do trono de Deus. Com duas asas cobriam o rosto,
com outras duas os pés, e com mais duas voavam e diziam: Santo,
santo, santo é o Senhor dos exércitos. Por isso recitamos essa
doxologia que nos foi transmitida pelos serafins, para que neste
canto nos associemos aos exércitos celestes.
Epiclese
7. Depois de santificados
por esses hinos espirituais, suplicamos ao Deus benigno que envie o
Espírito Santo sobre os dons colocados, para fazer do pão corpo de
Cristo e do vinho sangue de Cristo. Pois tudo o que o Espírito Santo
toca é santificado e transformado.
Intercessões
8. Em seguida, realizado o
sacrifício espiritual, o culto incruento, em presença dessa vítima
de propiciação, invocamos a Deus pela paz comum das igrejas, pelo
bem-estar do mundo, pelos imperadores, pelos exércitos e aliados,
pelos doentes, pelos aflitos e, em geral, todos nós rezamos por
todos aqueles que têm necessidade de socorro e oferecemos essa
vítima.
9. Depois fazemos menção
dos que adormeceram, primeiro dos patriarcas, profetas, apóstolos,
mártires, para que Deus, por suas preces e intercessão, aceite
nossa súplica. Depois ainda rezamos pelos santos padres, bispos
adormecidos e, enfim, por todos os que nos precederam, persuadidos de
que será de máximo proveito para as almas, pelas quais a súplica é
elevada ante a santa e tremenda vítima.
10. E quero persuadir-vos
com um exemplo. Sei que muitos dizem: Que aproveita à alma que parte
deste mundo com faltas ou sem elas, se é mencionada na oferenda
[eucarística]? Porventura, se um rei banisse aos que se rebelaram
contra ele, e se em seguida seus companheiros, trançando uma coroa,
a presenteiam ao rei em favor dos condenados, não lhes concederá a
remissão dos castigos? Do mesmo modo nós também, apresentando a
Deus as súplicas pelos adormecidos, embora tenham sido pecadores,
nós não trançamos uma coroa, mas apresentamos o Cristo imolado por
nossos pecados, tornando propício em favor deles e em nosso o Deus
benigno.
O "Pater"
11. Depois disso, tu dizes
aquela oração que o Salvador transmitiu aos discípulos, atribuindo
a Deus, com pura consciência, o nome de Pai e dizes: Pai nosso,
que estás nos céus. Ó incomensurável benignidade de Deus! Aos
que o tinham abandonado e jaziam em extremos males, é concedido o
perdão dos males e a participação da graça, a ponto de ser
invocado como Pai. Pai nosso que estás nos céus. Os céus poderiam
bem ser os que portam a imagem do celestial, nos quais Deus habita e
vive.
12. Santificado seja teu
nome. Santo é por natureza o nome de Deus, quer o digamos ou não.
Mas uma vez que naqueles que pecam por vezes é profanado, segundo o
que se diz: Por vós meu nome é continuamente blasfemado entre as
nações, oramos que em nós o nome de Deus seja santificado. Não
que por não ser santo chegue a sê-lo, mas porque em nós ele se
torna santo quando nos santificamos e praticamos obras dignas de
santificação.
13. Venha o teu reino.
É próprio de uma alma pura dizer com confiança: Venha o teu
reino. Quem ouviu Paulo dizer: Que o pecado não reine em vosso
corpo mortal (Rm 6,12) e se purificar em obra, pensamento e palavra, dirá a
Deus: Venha o teu reino.
14. Seja feita a tua
vontade, assim no céu como na terra. Os divinos e bem-aventurados
anjos de Deus fazem a vontade de Deus, como Davi dizia no salmo: Bendizei ao Senhor, todos os seus anjos, heróis poderosos, que
executais sua palavra (Sl 103,20). Rezando, pois, com vigor, dize isto: como
nos anjos se faz a tua vontade, Senhor, assim na terra se faça em
mim.
15. Nosso pão
substancial dá-nos hoje. O pão comum não é substancial. Mas
este pão é substancial, pois se ordena à substância da alma. Este
pão não vai ao ventre nem é lançado em lugar escuso mas se
distribui sobre todo o organismo, em proveito da alma e do corpo. O "hoje" equivale a dizer de "cada dia" , como também dizia Paulo: Enquanto perdura o hoje.
16. E perdoa-nos as
nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores.
Temos muitos pecados. Caímos, pois, em palavra e em pensamento e
fazemos muitas coisas dignas de condenação. E se dissermos que
não temos pecado, mentimos (1Jo 1,8), como diz João. Fazemos com Deus um
pacto pedindo-lhe nos perdoe nossos pecados como também nós
perdoamos ao próximo suas dívidas. Tendo presente, portanto, o que
recebemos em troca do que damos, não sejamos negligentes, nem
deixemos de perdoar uns aos outros. As ofensas que se nos fazem são
pequenas, simples, fáceis de reconciliar. As que nós fazemos a Deus
são enormes e temos necessidade só de sua benignidade. Cuida,
então, que por faltas pequenas e simples contra ti não te excluas
do perdão, por parte de Deus, dos pecados gravíssimos.
Papa celebrando na sala da Última Ceia, Jerusalem. |
17. E não nos induzas
em tentação, Senhor. Porventura com isto o Senhor nos ensina a
pedir que de modo algum sejamos tentados? Como se encontra em outro
lugar: Aquele que foi tentado não tem experiência (Eclo 34,10) e ainda:
Tende por suma alegria, meus irmãos, se cairdes em diversas
provações (Tg 1,2)? Mas jamais entrar em tentação é o mesmo que ser
submerso por ela. A tentação, pois, se assemelha a uma torrente
difícil de atravessar. Os que, então, não são submersos nas
tentações, atravessam, como bons nadadores, sem serem arrastados
pela corrente. Os que não são assim, uma vez que entram, são
submersos. Assim, por exemplo, Judas, entrando na tentação da
avareza, não passou a nado, mas, submergindo, afogou-se corporal e
espiritualmente. Pedro entrou na tentação de negação, mas, tendo
entrado, não submergiu; antes, nadando com vigor, se salvou da
tentação.
Escuta novamente, em
outro lugar, o coro dos santos todos rendendo graças por terem sido
subtraídos à tentação: Tu nos provaste, ó Deus,
acrisolaste-nos como se faz com a prata. Deixaste-nos cair no laço;
carga pesada puseste em nossas costas; submeteste-nos ao jugo dos
tiranos. Passamos pelo fogo e pela água, mas tu nos conduziste ao
refrigério» (Pv 17,10). Tu os vês falar abertamente de sua travessia sem
serem vencidos? Tu nos conduziste ao refrigério (Sl 19, 7). Chegar ao
refrigério é ser livrado da tentação.
18. Mas livra-nos do
Mal. Se a expressão «não nos induzas em tentação»
significasse não sermos de modo algum tentados, não se diria: Mas
livra-nos do Mal. O Mal é o demônio, nosso adversário, do qual
pedimos ser libertos.
Depois, terminada a
prece, dizes: amém, selando com este amém, que significa "faça-se", o que se contém na oração ensinada por Deus.
Comunhão
19. Depois disso, diz o
sacerdote: As coisas santas aos santos. As coisas são as
oferendas aí colocadas, pois receberam a vinda do Espírito Santo.
Santos sois também vós, julgados dignos do Espírito Santo. As
coisas santas, então, convêm aos santos. Em seguida vós dizeis:
Um é o santo, um o Senhor, Jesus Cristo. Verdadeiramente um é o
santo, santo por natureza. Nós, porém, se santos, o somos não pela
natureza, mas pela participação, ascese e prece.
20. Depois dessas coisas,
ouvis o cantor que, com uma melodia divina, vos convida à comunhão
dos santos mistérios, dizendo: Provai e vede como o Senhor é
bom (Sl 34,9). Não confieis o julgamento ao gosto corporal, mas à fé
inabalável. Pois provando não provais pão e vinho, mas o corpo e
sangue de Cristo que aqueles significam.
21. Ao te aproximares [da
comunhão], não vás com as palmas das mãos estendidas, nem com os
dedos separados; mas faze com a mão esquerda um trono para a direita
como quem deve receber um Rei e no côncavo da mão espalmada recebe
o corpo de Cristo, dizendo: Amém. Com segurança, então,
santificando teus olhos pelo contato do corpo sagrado, toma-o e cuida
de nada se perder. Pois se algo perderes é como se tivesses perdido
um dos próprios membros. Dize-me, se alguém te oferecesse lâminas
de ouro, não as guardarias com toda segurança, cuidando que nada
delas se perdesse e fosses prejudicado? Não cuidarás, pois, com
muito mais segurança de um objeto mais precioso que ouro e pedras
preciosas, para dele não perderes uma migalha sequer?
22. Depois de teres
comungado o corpo de Cristo, aproxima-te também do cálice do seu
sangue. Não estendas as mãos, mas inclinando-te, e num gesto de
adoração e respeito, dize amém. Santifica-te também tomando o
sangue de Cristo. E enquanto teus lábios ainda estão úmidos,
roça-os de leve com tuas mãos e santifica teus olhos, tua fronte e
teus outros sentidos. Depois, ao esperares as orações [finais],
rende graças a Deus que te julgou digno de tamanhos mistérios.
23. Conservai
inviolavelmente essas tradições e vós mesmos guardai-vos sem
ofensa. Não vos separeis da comunhão nem pela mancha do pecado vos
priveis desses santos e espirituais mistérios. O Deus da paz
santifique-vos completamente. Conserve-se inteiro o vosso espírito,
e a vossa alma e o vosso corpo sem mancha, para a vinda de Nosso
Senhor Jesus Cristo (1Ts 5,23), a quem a glória pelos séculos dos séculos.
Amém.
-- Quinta Catequese Mistagógica aos Recém-iluminados, de São Cirilo de Jerusalém (século IV)
Demais Catequeses:
Nenhum comentário:
Postar um comentário