1 de nov. de 2011

A morte é boa ou má?


Penso que é útil inquirir sobre a natureza da morte, se deve ser classificada como coisa boa ou má. Se for considerada isoladamente, sem dúvida, deve ser contada como coisa má, porque tudo que for oposto a vida não pode ser coisa boa. Mais ainda, como diz o sábio: Deus criou o ser humano incorruptível e o fez à imagem de Sua própria natureza: foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que são do seu partido (Sb 2,24). Com estas palavras, São Pedro concorda quando diz: Pois como o pecado entrou no mundo por um só homem e, através do pecado, a morte; e a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5,12). Se Deus não fez a morte, certamente ela não pode ser boa, porque tudo que Deus fez é bom, de acordo com as palavras do Genesis: E Deus viu tudo quanto havia feito e achou que era muito bom (Gn 1,31a).

Embora a morte não possa ser considerada como um bem em si mesma, a sabedoria de Deus a temperou como se assim fosse, pois através da morte recebemos muitas graças. Davi exclama: É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis (Sl 116, 14), e a Igreja assim proclama na liturgia a cerca de Jesus: “Quem por Sua morte destruiu nossa morte, e pela Sua ressurreição reconquistou a vida”. Agora, a morte que destruiu a morte e reconquistou a vida não pode ser outra coisa que muito boa. Portanto, senão toda morte pode ser dita boa, pelo menos algumas o são. Por isso Santo Ambrósio não exitou em escrever um livro intitulado “Sobre as vantagens da morte”, no qual ele claramente prova que a morte, embora produzida pelo pecado, possui vantagens peculiares.

Há ainda outra razão que prova que a morte, mesmo sendo um mal em si mesma, pode, pela graça do Senhor, produzir muitas bençãos. Em primeiro lugar, há esta grande benção, a morte põe um fim nas misérias da vida. Jó eloquentemente reclama dos males do seu estado atual: O homem nascido da mulher vive pouco tempo e é cheio de muitas misérias; é como uma flor que germina e logo fenece, uma sombra que foge sem parar (Jó 14,1-2). E o Livro de Eclesiastes diz: E julguei os mortos, que estão mortos, mais felizes que os vivos que ainda estão em vida, e mais feliz que uns e outros o aborto que não chegou à existência, aquele que não viu o mal que se comete debaixo do sol (Ecle 4,2-3). E ainda se encontra: Penosa ocupação foi dada a todos os mortais e pesado jugo oprime os filhos de Adão, desde o dia em que saem do ventre de sua mãe até o dia da volta para a mãe comum: objeto de suas reflexões e temor do seu coração é a descoberta do que os espera, o dia do seu fim (Eclo 40,1-2). O Apóstolo também fala sobre as misérias da vida: Infeliz que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24)

Destes testemunhos encontrados nas Sagradas Escrituras fica claro que a morte tem uma grande vantagem: nos livrar dos problemas desta vida. Mas ela ainda possui uma mais alta vantagem, porque é o portão de saída de uma prisão e entrada no Paraíso. Isto foi revelado por Nosso Senhor a São João, quando por sua fé encontrava-se exilado na ilha de Patmos: Eu ouvi uma voz do céu, que dizia: Escreve: Felizes os mortos que doravante morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem (Ap 14,13).

Realmente abençoada é a morte dos santos, que por ordem do Rei Eterno liberta as suas almas da prisão da carne e as conduz aos reinos celestiais, onde as almas dos justos repousam de todos os seus trabalhos, e como recompensa de todos os seus bons trabalhos, recebem a coroa da glória. Para as almas no purgatório, a morte também não é pouco benefício, pois as livra do medo da morte e dá certeza de um dia virem a possuir a felicidade eterna. Até para os pecadores, a morte representa uma vantagem: faz com que deixem de pecar, prevenindo-os de aumentar ainda mais suas punições. Por conta destas excelentes vantagens, a morte para os homens bons não parece terrível, ao contrário, é fruto do amor de Deus. São Paulo assegura: Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro (Fl 1,21) e na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, afirma: Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma a respeito dos mortos, para que não vos entristeçais, como os outros homens que não têm esperança (1Ts 4,13).

Vivia há algum tempo atrás uma senhora muita santa, chamada Catarina Adorna, de Gênova. Era tão inflamada pelo amor de Cristo, que entre tantos ardentes desejos, o que mais solicitava era ser “dissolvida” e, então, partir para o seu Amado. Apaixonada pela morte, como era, sempre afirmava ser a mais bela e adorável coisa, reclamando apenas que a morte fugia dela que a desejava, mas encontrava a outros que dela fugiam.

Por estas considerações podemos concluir que a morte, quando produzida pelo pecado, é coisa ruim; mas, pela graça de Cristo que sofreu a morte por nossa causa, tornou-se de muitas maneiras saudável, amável e desejável.

-- Do livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

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