Penso que é útil
inquirir sobre a natureza da morte, se deve ser classificada como
coisa boa ou má. Se for considerada isoladamente, sem dúvida, deve ser contada como coisa má, porque tudo que for oposto a vida
não pode ser coisa boa. Mais ainda, como diz o sábio: Deus
criou o ser humano incorruptível e o fez à imagem de Sua própria
natureza: foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e
experimentam-na os que são do seu partido
(Sb 2,24). Com estas palavras, São Pedro concorda quando diz: Pois
como o pecado entrou no mundo por um só homem e, através do pecado,
a morte; e a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram
(Rm
5,12). Se Deus não fez a morte, certamente ela não pode ser boa,
porque tudo que Deus fez é bom, de acordo com as palavras do
Genesis: E
Deus viu tudo quanto havia feito e achou que era muito bom
(Gn 1,31a).
Embora
a morte não possa ser considerada como um bem em si mesma, a
sabedoria de Deus a temperou como se assim fosse, pois através da
morte recebemos muitas graças. Davi exclama: É
preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis
(Sl 116, 14), e a Igreja assim proclama na liturgia a cerca de Jesus: “Quem por Sua
morte destruiu nossa morte, e pela Sua ressurreição reconquistou a
vida”. Agora, a morte que destruiu a morte e reconquistou a vida
não pode ser outra coisa que muito boa. Portanto, senão toda morte
pode ser dita boa, pelo menos algumas o são. Por isso Santo Ambrósio
não exitou em escrever um livro intitulado “Sobre as vantagens da
morte”, no qual ele claramente prova que a morte, embora produzida
pelo pecado, possui vantagens peculiares.
Há
ainda outra razão que prova que a morte, mesmo sendo um mal em si
mesma, pode, pela graça do Senhor, produzir muitas bençãos. Em
primeiro lugar, há esta grande benção, a morte põe um fim nas
misérias da vida. Jó eloquentemente reclama dos males do seu estado
atual: O
homem nascido da mulher vive pouco tempo e é cheio de muitas
misérias; é como uma flor que germina e logo fenece, uma sombra que
foge sem parar
(Jó
14,1-2). E o Livro de Eclesiastes diz: E
julguei os mortos, que estão mortos, mais felizes que os vivos que
ainda estão em vida, e mais feliz que uns e outros o aborto que não
chegou à existência, aquele que não viu o mal que se comete
debaixo do sol (Ecle
4,2-3). E ainda se encontra: Penosa
ocupação foi dada a todos os mortais e pesado jugo oprime os filhos
de Adão, desde o dia em que saem do ventre de sua mãe até o dia da
volta para a mãe comum: objeto de suas reflexões e temor do seu
coração é a descoberta do que os espera, o dia do seu fim (Eclo
40,1-2). O Apóstolo também fala sobre as misérias da vida: Infeliz
que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm
7,24)
Destes testemunhos encontrados nas Sagradas Escrituras fica claro que a
morte tem uma grande vantagem: nos livrar dos problemas desta vida.
Mas ela ainda possui uma mais alta vantagem, porque é o portão de
saída de uma prisão e entrada no Paraíso. Isto foi revelado por
Nosso Senhor a São João, quando por sua fé encontrava-se exilado
na ilha de Patmos: Eu
ouvi uma voz do céu, que dizia: Escreve: Felizes os mortos que
doravante morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansem dos seus
trabalhos, pois as suas obras os seguem (Ap 14,13).
Realmente
abençoada é a morte dos santos, que por ordem do Rei Eterno liberta
as suas almas da prisão da carne e as conduz aos reinos celestiais,
onde as almas dos justos repousam de todos os seus trabalhos, e como
recompensa de todos os seus bons trabalhos, recebem a coroa da
glória. Para as almas no purgatório, a morte também não é pouco
benefício, pois as livra do medo da morte e dá certeza de um
dia virem a possuir a felicidade eterna. Até para os pecadores, a
morte representa uma vantagem: faz com que deixem de pecar,
prevenindo-os de aumentar ainda mais suas punições. Por conta
destas excelentes vantagens, a morte para os homens bons não parece
terrível, ao contrário, é fruto do amor de Deus. São Paulo assegura:
Porque
para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro
(Fl 1,21) e na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, afirma:
Irmãos,
não queremos que ignoreis coisa alguma a respeito dos mortos, para
que não vos entristeçais, como os outros homens que não têm
esperança
(1Ts 4,13).
Vivia
há algum tempo atrás uma senhora muita santa, chamada Catarina Adorna, de Gênova. Era tão inflamada pelo amor de Cristo, que entre
tantos ardentes desejos, o que mais solicitava era ser “dissolvida”
e, então, partir para o seu Amado. Apaixonada pela morte, como era,
sempre afirmava ser a mais bela e adorável coisa, reclamando apenas
que a morte fugia dela que a desejava, mas encontrava a outros que
dela fugiam.
Por
estas considerações podemos concluir que a morte, quando produzida
pelo pecado, é coisa ruim; mas, pela graça de Cristo que sofreu a
morte por nossa causa, tornou-se de muitas maneiras saudável, amável
e desejável.
-- Do livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
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