"Sede bendito... para todo o sempre, Senhor, Deus do nosso pai Israel!" (1 Cr 29, 10). Este intenso cântico de louvor, que o primeiro livro das Crónicas põe nos lábios de Davi, faz-nos reviver a explosão de alegria com que a comunidade da antiga aliança saudou os grandes preparativos realizados com vista à construção do templo, fruto de um compromisso conjunto do rei e de muitos que tinham trabalhado com ele. Como que competiam em generosidade, porque isto exigia uma morada que não "se destina a um homem, mas ao Senhor Deus" (1 Cr 29, 11).
Ao reler aquele acontecimento, séculos depois, o Cronista intui os sentimentos de Davi e de todo o povo, a sua alegria e admiração por quantos tinham oferecido a sua contribuição: "O povo alegrava-se com as suas oferendas voluntárias, pois era de coração generoso que as faziam ao Senhor. O próprio rei Davi sentiu alegria" (1 Cr 29, 9).
Este é o contexto em que nasce o Cântico. Mas ele só considera brevemente a satisfação humana, para pôr a glória de Deus imediatamente no centro da atenção: "A Vós, Senhor, a grandeza... a Vós, Senhor, a realeza...". A grande tentação que está sempre à espreita, quando se realizam obras pelo Senhor, é a de nos colocarmos a nós mesmos no centro, como se nos sentíssemos credores de Deus. Davi, pelo contrário, atribui tudo ao Senhor. Não é o homem, com a sua inteligência e a sua força, o primeiro artífice de quanto se realizou, mas sim o próprio Deus.
Davi expressa desta forma a profunda verdade de que tudo é graça. Num certo sentido, aquilo que foi colocado à disposição para o templo, não é senão a restituição, além disso extremamente exígua, de quanto Israel recebeu no inestimável dom da aliança que Deus estipulou com os antepassados. Na mesma linha, Davi dá mérito ao Senhor por tudo o que constituiu a sua sorte, tanto em campo militar como nos sectores político e económico. Tudo vem d'Ele!
Daqui, o impulso contemplativo destes versículos. Parece que ao autor do Cântico não bastam as palavras, para professar a grandeza e o poder de Deus. Ele considera-O sobretudo na especial paternidade demonstrada a Israel, "nosso pai". Este é o primeiro título que exige o louvor "agora e sempre".
Na recitação cristã destas palavras, não podemos deixar de recordar que esta paternidade se revelou de modo completo na encarnação do Filho de Deus. Ele, só Ele, é que pode falar a Deus chamando-lhe, em sentido próprio e afectuosamente, "Abba" (Mc 14, 36). Ao mesmo tempo, através do dom do Espírito, é-nos comunicada a sua filiação que nos torna "filhos no Filho". A bênção do antigo Israel por parte de Deus Pai adquire para nós a intensidade que Jesus nos manifestou, ensinando-nos a chamar a Deus "Pai nosso".
Depois, o olhar do autor bíblico alarga-se da história da salvação para todo o cosmos, a fim de contemplar a grandeza de Deus Criador: "Tudo, nos céus e na terra, é vosso!". E ainda, "Vós sois soberano sobre todas as coisas". Como no Salmo 8, o orante do nosso Cântico ergue a cabeça para a o firmamento infinito, dirigindo em seguida o olhar admirado para a imensidão da terra e tudo vê submetido ao domínio do Criador. Como expressar a glória de Deus? As palavras sobrepõem-se, numa espécie de sucessão mística: grandeza, poder, glória, majestade e esplendor; e depois, ainda força e potência. Tudo o que o homem experimenta de belo e de grande deve referir-se Àquele que está na origem de todas as coisas e que tudo governa. O homem sabe que tudo quanto possui é dádiva de Deus, como salienta Davi, dando continuidade ao Cântico: "Quem sou eu e quem é o meu povo, para que possamos fazer-vos voluntariamente estas oferendas?" (1 Cr 29, 14).
Este pano de fundo da realidade, como dom de Deus, ajuda-nos a conjugar os sentimentos de louvor e de reconhecimento do Cântico com a autêntica espiritualidade do ofertório, que na liturgia cristã nos faz viver sobretudo na celebração eucarística. É o que emerge da dupla oração com que o sacerdote oferece o pão e o vinho, destinados a tornar-se Corpo e Sangue de Cristo: "Da vossa bondade recebemos este pão, fruto da terra e do trabalho do homem, e apresentamo-lo a Vós para que se torne para nós alimento de vida eterna". Esta oração é repetida sobre o vinho. Sentimentos análogos são sugeridos tanto pela divina Liturgia bizantina, como pelo antigo Canon Romano, quando na anamnese eucarística exprimem a consciência de oferecer como dom a Deus, as coisas d'Ele recebidas.
A última aplicação desta visão de Deus é realizada pelo Cântico, tendo em vista a experiência humana da riqueza e do poder. Estas duas dimensões apareceram enquanto Davi predispunha o necessário para construir o templo. Também para ele mesmo podia ser uma tentação, aquela que é uma tentação universal: agirmos como se fôssemos árbitros absolutos daquilo que possuímos, fazendo disto um motivo de orgulho e de injustiça em relação ao próximo. A oração cadenciada neste Cântico leva o homem à sua dimensão de pobre, que tudo recebe.
Então, os reis desta terra são unicamente uma imagem do Reino divino: "a Vós, Senhor, a realeza!". Os abastados não podem esquecer-se da origem dos seus próprios bens: "É de Vós que vêm a riqueza e a glória". Os poderosos devem saber reconhecer-se em Deus, como fonte "de toda a grandeza e de todo o poder". O cristão é chamado a interpretar estas expressões, contemplando com exultação Cristo ressuscitado, glorificado por Deus "acima de todo o Principado, Potestade, Virtude e Dominação" (Ef 1, 21).
Cristo é o verdadeiro Rei do universo!
-- Papa João Paulo II, na audiência de 6 de Junho de 2001
Nenhum comentário:
Postar um comentário